Ensinar a ler e escrever é
um desafio que transcende amplamente a alfabetização em sentido estrito. O
desafio da escola hoje é o de incorporar todos os alunos a cultura do escrito e
o de conseguir que todos cheguem a ser leitores e escritores. O necessário é: Fazer
da escola uma comunidade de leitores que recorrem aos textos buscando a solução
de problemas e compreensão do mundo; uma comunidade de escritores que produzem
seus próprios textos para mostrar suas ideias; para informar sobre fatos que os
destinatários necessitam e devem conhecer, enfim, por tantos outros motivos
reais e importantes; fazer da escola um âmbito onde a leitura e a escrita sejam
práticas vivas e vitais; onde ler e escrever sejam instrumentos poderosos que
permitem repensar o mundo e reorganizar o próprio pensamento, onde interpretar
e produzir textos sejam direitos que é legítimo exercer e responsabilidade que
é necessário assumir; preservar o sentido do objeto de ensino para o sujeito da
aprendizagem; é preservar na escola o sentido que a leitura e a escrita têm
como práticas sociais.
O real é que levar à prática
o necessário é uma tarefa difícil para a escola. É por isso que, antes de
formular soluções, antes de desdobrar o possível é preciso analisar as
dificuldades. Historicamente, leitura e escrita sempre foram práticas
aristocráticas e de certo modo continuam sendo, patrimônio de certos grupos
mais que de outros. Não é simples determinar com exatidão o que, como e quando
os sujeitos aprendem essas práticas. Perguntas frequentes: O que se aprende
quando se ouve o professor lendo? Como ter acesso às antecipações e inferências
que as crianças presumivelmente fazem ao tentar ler um texto por si mesmo?
Quando se pode dizer que um aluno aprendeu a recomendar livros ou a confrontar
diversas interpretações?
•Paradoxos - Se a escola ensina ler e escrever com o único propósito
de que os alunos aprendam a fazê-lo, eles não aprenderão a função social da
leitura e da escrita. Se a escola abandona os propósitos didáticos e assume os
da prática social, estará abandonando ao mesmo tempo a sua função ensinante.
*
Paradoxos sobre duração e preservação de sentidos- se
tentar parcelar as práticas, é impossível preservar a sua natureza e o seu
sentido para o aprendiz, se não as parcelamos ,é difícil encontrar uma
distribuição dos conteúdos que permita ensiná-las.
O que fazer para preservar a
escola o sentido que a leitura e a escrita têm fora dela? Como evitar que se
desvirtuem ao serem ensinadas e aprendidas?
O possível é fazer o esforço
de conciliação das necessidades inerentes à instituição escolar com o propósito
educativo de formar leitores e escritores. Gerar condições didáticas que
permitam por em cena uma visão escolar da leitura e da escrita mais próxima da
versão social (não escolar) dessas práticas iniciando por formular como
conteúdos as tarefas do leitor e do escritor: fazer antecipações sobre o
sentido do texto que se está lendo e tentar verificá-las recorrendo à
informação visual, discutir diversas interpretações acerca de um mesmo
material, comentar o que se leu e compará-lo com outras obras do mesmo e outro
autor. Recomendar livros, compartilhar leituras com outros, atrever-se a ler
textos difíceis, tomar notas, planejar o que vai escrever modificar o plano
enquanto escreve revisar, fazer modificações. É possível para a realização de
uma versão escolar: Atuar em diferentes áreas através dos diferentes gêneros do
discurso, então trabalhar com projetos que levem em consideração situações
reais e resolução de problemas com finalidade compartilhada entre toda a
escola, como: gravar uma fita de poemas para outras crianças, por exemplo, dá
sentido ao aperfeiçoamento da leitura em voz alta, preparar uma carta para
protestar sobre algum fato, permitirá aprender a “escrever para protestar”,
quando se está envolvido numa situação autêntica. Essa modalidade organizativa
(projetos) que prevê um tempo maior de duração, além de favorecer a autonomia
dos alunos, que podem tomar iniciativas porque sabem para onde marcha o
trabalho, se contrapõe ao parcelamento do tempo e do saber.
Projetos não são suficientes
para instaurar uma relação tempo-saber que leve em conta o tempo da
aprendizagem e preserve o sentido do objeto de ensino. Para consegui-lo, é
necessário: Articular muitas temporalidades diferentes: atividades que se
desenvolvam com certa periodicidade durante um quadrimestre ou um ano – ler
notícias, contos ou curiosidades tal dia da semana, por exemplo-contribuem para
familiarizar com certos gêneros e para consolidar os hábitos de leitura, situações
pontuais, como escrever uma mensagem por correio eletrônico para um aluno de
outra escola, podem contribuir para consolidar certas práticas de comunicação
por escrito. O entrecruzamento dessas diferentes temporalidades permite aos
alunos realizar simultaneamente diferentes aproximações às práticas-participar
num mesmo período em atos de leitura e de escrita dirigidos a diversos
propósitos e assim voltar mais de uma vez ao logo do tempo a por em ação um
certo aspecto da leitura ou da escrita-escrever, reescrever, reler, resumir...
Qual é o desafio para
transformar o ensino da leitura e da escrita? Formar praticantes da leitura e da escrita e
não apenas sujeitos que possam “decifrar” o sistema de escrita. Formar seres
humanos críticos, capazes de ler entrelinhas e de assumir uma posição própria
frente à mantida, explícita ou implicitamente, pelos autores dos textos com os
quais interagem, em vez de formar indivíduos dependentes da letra do texto e da
autoridade de outros. Formar pessoas desejosas de embrenhar-se em outros mundos
possíveis que a literatura oferece. Assumir este desafio significa abandonar as
atividades mecânicas desprovidas de sentido, que levam as crianças a
distanciar-se da leitura por considerá-la uma mera obrigação escolar, significa
também incorporar situações em que ler determinados materiais seja
imprescindível para o desenvolvimento dos projetos que estejam sendo
desenvolvidos.
O desafio é conseguir que os
alunos cheguem a ser produtores de língua escrita, conscientes da pertinência e
da importância de emitir certo tipo de mensagem em determinado tipo de situação
social, em vez de se treinar unicamente como “copistas”, é conseguir que a
escrita deixe de ser na escola somente um objeto de avaliação, para se
constituir realmente num objeto de ensino, é tornar possível que todos os
alunos se apropriem da escrita e a ponham em prática, sabendo por experiência,
não por transmissão verbal-que é um longo e complexo processo constituído por
operações recorrentes de planejamento, contextualização e revisão, é promover a
descoberta e a utilização da escrita como instrumento de reflexão sobre o
próprio pensamento, é combater a
discriminação que a escola opera atualmente, não só quando cria o fracasso
explícito daqueles que não consegue alfabetizar, como também quando impede aos
outros os que aparentemente não fracassam –chegar a ser leitores e produtores
de textos competentes e autônomos.
Na escola, a leitura é antes
de mais nada um objeto de ensino. Para que também se transforme em objeto de
aprendizagem, é necessário que tenha sentido do ponto de vista do aluno, o que significa,
entre outra coisas , que deve cumprir uma função para a realização de um
propósito que ele conhece e valoriza. Para que a leitura como objeto de ensino
não se afaste demasiado da prática social que se quer comunicar, é
imprescindível “representar” - ou “reapresentar”, na escola, os diversos usos
que ela tem na vida social. Cada situação de leitura responderá a um duplo
propósito. Um propósito didático, que é ensinar certos conteúdos constitutivos
da prática social de leitura, com o objetivo de que o aluno possa reutilizá-los
no futuro, em situações não didáticas. E um propósito comunicativo relevante
desde a perspectiva atual do aluno.
Os textos escolhidos cumprem pelo menos duas
condições: nenhum deles proporciona, de maneira direta, a resposta à pergunta
feita, são relativamente difíceis para os alunos. A organização da tarefa leva
em conta as condições anteriores: Leem-se vários textos organiza-se a situação
de leitura em duplas ou grupos de modo que as crianças possam colaborar entre
si e fazer consultas ao professor. Ao ler os próximos textos já se estabelecem
relações entre os textos lidos. Como as crianças deverão responder por escrito
à pergunta apresentada, anotações são feitas durante a leitura.
O planejamento do texto a
ser produzido se realiza a partir das anotações feitas durante a leitura.
Discute-se a organização do texto. O processo de textualização se realiza,
nesse caso, através de um ditado das crianças para o professor, já que a ideia
é produzir um único texto. A produção coletiva permite ir discutindo as
melhores maneiras de se elaborar uma versão mais adequada do texto e permite a
intervenção mais forte do professor, que vai apontando para as crianças alguns
problemas que elas ainda não consigam detectar por si mesmas. A revisão final
supõe várias releituras do texto, focalizadas em diferentes aspectos: clareza,
coesão, ortografia, pontuação.
Diferentes modalidades de
leitura podem ser utilizadas, em distintas situações, frente a um mesmo tipo de
texto, um mesmo material informativo-científico pode ser lido para se obter uma
informação global, para se buscar um dado específico ou para aprofundar um
aspecto determinado do tema sobre o qual se está escrevendo; um artigo
jornalístico pode ser lido num momento simplesmente para se conhecer o ponto de
vista do autor sobre um tema de interesse para o leitor e ser utilizado em
outro momento como objeto de reflexão, como subsídio para análise de outra questão.
Um poema ou um conto podem ser lidos em certo momento buscando um prazer
estético e se transformar, em outra situação, no meio que permite comunicar
algo a alguém.
Diversidade de propósito,
diversidade de modalidades de leitura, diversidade de textos e diversidade de
combinações entre eles... A inclusão dessas diversidades (FERREIRO, 1944) assim
como sua articulação com as regras de exigências escolares, é um dos
componentes da complexidade didática que é necessário assumir quando se opta
por apresentar a leitura na escola sem simplificações, velando por conservar
sua natureza e, portanto, sua complexidade como prática social.
Analisar e enfrentar o real
é muito duro, mas é imprescindível quando se assumiu a decisão de fazer tudo o
que é possível para alcançar o necessário. Formar todos os alunos como
praticantes da cultura escrita.
Nenhum comentário:
Postar um comentário